Quando chegou a hora de apresentar o seu projeto, a engenheira biomédica Ana Sousa começou por sacar de um frasco de iogurte líquido. “Estão a ver este simples gesto? Parece fácil, mas é difícil para muita gente. Há dez milhões de doentes que não conseguem abrir sozinhos este frasco de iogurte”. A doença de Parkinson é uma das principais causas para esse impedimento e é com estes doentes que são gastos milhares de euros.
Nesta altura, Ana Sousa e os seus cinco colegas de equipa ainda não sabiam que o seu projeto – Eyebrain – ia ganhar o primeiro prémio da maratona digital (hackathon) que este fim de semana ocupou o Palácio dos Correios, no Porto, por iniciativa da Fundação Calouste Gulbenkian. Mas, ganhasse ou não, seria sempre um projeto do qual Ana Sousa não desistiria. A solidez científica com que nos últimos dois anos tem procurado uma forma de diagnóstico precoce para esta doença degenerativa vem do facto de se ter especializado em pupilometria e de ser esta a base da sua tese de doutoramento.
O que ela pensou foi na possibilidade de construir uma aplicação para telemóvel que fizesse esse diagnóstico precoce, de uma forma regular, individual e barata. Juntou-se a outros dois colegas de doutoramento em Biomédicas, como Maia Narciso e Rui Almeida, a João Belo (também de biomédicas), e aos engenheiros informáticos, Jorge Rego e Nuno Miquelina (engenheiro informático), todos com uma ligação profissional à Compta – Equipamentos Informáticos.
E o que daqui saiu já foi muito: uma app que permite uma espécie de selfie aos nossos olhos, dispara uma luz que provoca uma reação ou pestanejar. E a partir daqui se avalia a dinâmica pupilar e se antecipa a propensão para a doença de Parkinson.
Ao conquistar 5 mil euros para continuarem com o projeto, conquistaram também visibilidade e um incentivo que lhes dará lugar em mais um bootcamp e na websummit. “O passo seguinte é melhorar a infraestrutura e os próprios algoritmos”, conta Ana Sousa à Visão, pensando que este pode ser também uma ajuda nos centros de saúde e unidades hospitalares. O bootcamp pode ser importante para fazer um plano de negócios, se bem que ela já pensou em quem pode patrocinar a continuação da investigação e ajudar a escalar para um negócio em massa: as cadeias farmacêuticas e as unidades de saúde.
Atenção ao que come
Esta terceira edição do Hack for Good, este ano deslocalizada para o Porto e a dar o pontapé de saída para a semana Start&Scale que todos os anos se realiza, reuniu 35 equipas. O desafio passava por encontrar soluções tecnológicas que ajudassem a resolver algumas das preocupações sociais do momento: aumentar o bem-estar dos mais novos e também dos idosos, assim como ajudar na integração de refugiados.
Apesar de muitas tentativas na área dos refugiados, as ideias apresentavam ainda algumas fragilidades e apenas uma delas foi escolhida para as 10 finalistas: uma espécie de site onde refugiados e imigrantes inscreviam os seus dados e as suas qualificações, que eram posteriormente certificadas oficiosamente por uma entidade empregadora.
O segundo prémio acabou também por se focar na área da saúde. Rafaela Saraiva, Nuno Ferreira, Gil Coelho e Pedro Medeiros pensaram na dificuldade que os mais idosos, mas ainda independentes e com algum grau de autonomia, têm em ir às compras. Sobretudo na dificuldade de ler e interpretar os rótulos dos alimentos e saber se estão a fazer a dieta certa, caso sofram de osteoporose, tensão ou colesterol altos. O ponto de partida foi a estatística que diz que 60% dos idosos que entram em lares e 40% dos hospitalizados sofrem de malnutrição.
Então começaram por desenvolver uma app que faz a leitura do código de barras e, numa “linguagem simples, eficaz e adaptada”, os informa se estão ou não a fazer as escolhas certas e mais saudáveis. A ideia é acrescentar mais tarde um dispositivo áudio e alertas de intolerâncias, alergias ou outros constrangimentos. Se a ficha da pessoa em causa assinalar outro tipo de fragilidades, a app pode também dizer se deve tomar, por exemplo, vitamina C e D. Ao apontar ao código de barras do produto em causa, a app assinala a cor verde, para permitir o consumo, ou vermelho, para impedir.
Os mais velhos usam smartphones? Alguns dos que estavam presentes na sessão e que serviam de validação para as ideias dos mais novos usavam apenas telemóveis simples, para fazer e receber chamadas. Outros, já usavam coisas mais modernas, algo que também dependia do poder de compra de cada um. Mas todos frisavam que era importante ter coisas que fossem fáceis de ler, de usar, com linguagem em português e, já agora, baratas.
Olho nas ciências da computação
O projeto Litmaker ganhou o terceiro lugar com um projeto que se destina aos adolescentes entre os 10 e os 14 anos. E que, em linguagem simples, pretende despertar o engenheiro que há em cada um dos adolescentes deste tempo. Ou, pelo menos, potenciar um interface tecnológico que desperte a criatividade, o sentido de causa e consequência, a lógica, ao mesmo tempo que é um sistema de aprendizagem. Isto porque – e lá vem mais uma estatística – “65% das crianças de hoje vão entrar no mercado de trabalho com as tecnologias de futuro”. Então, vamos lá “ensinar o paradigma das ciências da computação”, apostando na aprendizagem na área das engenharias e das matemáticas.
Por exemplo, se alguém carregar num termómetro que indica um estado febril terá de o associar a uma ventoinha e assim perceberá que a temperatura arrefece.
Conscientes de que já existem sites deste tipo para computador, mas que são caros, Eduardo Pereira (de comunicação e artes), Ricardo Graça e Tiago Borba (engenheiros informáticos), Ricardo Peixoto e Paulo Torres (de engenharia mecânica) e António Sousa (engenharia eletrotécnica) querem fazer “a primeira plataforma para smartphones”.
E querem fazê-la barata, de modo a que possa ser usada como instrumento educativo em países em vias de desenvolvimento – e aqui estão a pensar em África, por onde já andaram em ações de voluntariado. “Nos Estados Unidos isto já é muito usado, mas é uma ferramenta cara. Queremos agilizá-la para smartphones e faze-la gratuita a pensar nos mais desfavorecidos”. O júri percebeu a ideia e agradou-lhe sobretudo o mote: “Isto não é o final, mas o início de um caminho”.
Daqui até ao bootcamp e à websummit, muitas das ideias que nasceram nas 36 horas de trabalho destas equipas poderão ainda ser desenvolvidas. Há muitas ideias a fervilhar, mas é preciso perceber em que é que se diferenciam de outras já existentes e a possibilidade de a concretizarem. Mas, no final de domingo, a maioria partiu para Lisboa com a satisfação do dever cumprido. “Uma maratona destas vale sempre a pena”.